08/04/2024
Anvisa volta a proibir a venda de álcool líquido 70% no Brasil a partir do dia 29 deste mês
BRASÍLIA, DF - “Fica calmo que vamos sair dessa e tudo vai
passar”. Foi essa a frase escutada por Pedro Ernesto Martinez quando tinha
apenas 17 anos e acordava de uma dolorosa cirurgia de raspagem de pele após ter
diversas partes de seu corpo queimadas por álcool. O líquido era usado para
acender o carvão durante um churrasco com família. O autor da frase foi uma outra vítima de queimadura. “A
situação dele era pior do que a minha. Ele estava com o corpo todo coberto de
curativos, deixando à vista apenas um de seus olhos. Mesmo assim, tentava me
passar uma mensagem de otimismo. Foi marcante”, lembra Pedro Ernesto. Acidentes do tipo fazem milhares de vítimas a cada ano no
país. Diante dessa situação alarmante, o Poder Público proibiu, desde 2002, a
venda de álcool líquido com percentual igual ou superior a 54 GL em
estabelecimentos comerciais como supermercados e farmácias. A medida, no entanto, foi temporariamente revogada, em 2020,
durante a pandemia de covid-19, uma vez que, na época, o álcool usado para a
higienização de mãos e objetos ajudava a evitar a disseminação do vírus. O prazo final previsto pela Agência Nacional de Vigilância
Sanitária para a comercialização de álcool líquido é o dia 29 de abril. “A
partir daí, a disponibilidade será apenas em outras formas físicas, como gel,
lenço impregnado, aerossol”, explica a Anvisa. Churrasqueiras e fogueiras De acordo com o Ministério da Saúde, são registradas cerca
de 150 mil internações por ano, em decorrência de queimaduras. Com base em
levantamentos e consultas com participação da sociedade, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa) explica que, em geral, a situação mais perigosa envolvendo queimaduras
está relacionadas ao uso do álcool no momento em que as pessoas acendem
churrasqueiras e fogueiras. “No gerenciamento de risco são considerados vários fatores
para se avaliar o potencial perigo de um produto para o ser humano. No caso do
álcool, um desses fatores é a facilidade de espalhamento do produto antes e
durante a combustão quando em estado líquido, o que é inversamente proporcional
quando com viscosidade. Assim, quando há acidente com o álcool na forma física
líquida, a extensão e o dano à pele são grandes”, informou a agência. Foi exatamente o que aconteceu com Pedro Ernesto. “Tudo
aconteceu muito rápido. Foram 10 ou 15 segundos que mudaram minha vida,
inclusive prejudicando meus estudos, porque isso aconteceu no ano em que eu
deveria me preparar para os exames visando a entrada na universidade”, disse,
referindo-se ao acidente ocorrido no dia 2 de fevereiro de 2014. “Eu estava jogando sinuca. Ao ver meu tio usando álcool para
acender o carvão, fui na direção dele para avisar que isso era perigoso. Não
deu outra. Ao virar a garrafa para tentar reativar o fogo quase apagado, a
chama subiu pelo fio de álcool e explodiu, espalhando o fogo por todos os
lados”, lembra Pedro Ernesto. O acidente aconteceu quando ele estava a meio metro da
churrasqueira. “Lembro de ter usado as mãos para proteger meu rosto. Após
alguns segundos, senti minha perna queimando. Meu calção estava em chamas.
Jogaram então água para apagar o fogo. Foi quando olhei para minhas mãos e vi a
pele toda retorcida. Foram segundos de total desespero”, acrescentou o jovem,
que sofreu queimaduras de terceiro grau nas mãos, nos antebraços e nas coxas; e
de segundo grau na barriga. Após um mês de internação, Pedro foi para casa, onde foram
necessários outros dois meses de tratamento dolorido e caro, uma vez que cada
placa de metal utilizada para cobrir a pele custava mais de R$ 1,5 mil. “São feridas que demoram muito a cicatrizar. Muita dor
mesmo, porque era necessário machucar com raspagens para sarar. Eu chorava
pedindo mais morfina para aliviar a dor, principalmente nos momentos
posteriores às quatro cirurgias que fiz”, descreveu o jovem de 27 anos, que
trabalha atualmente como bartender, especialista em preparar drinks alcoólicos
e não alcoólicos, no restaurante Capincho, em Porto Alegre. Supermercados querem vender A retirada de álcool líquido das prateleiras de
supermercados foi criticada pela Associação Brasileira de Supermercados
(Abras). A entidade reivindica, junto à Anvisa, que a medida seja revista, sob
o argumento de que “o consumidor já se acostumou a comprar [o produto] não só
em farmácias, mas em supermercados de todo o Brasil”. Segundo a Abras, “a proibição da comercialização retirará do
consumidor o acesso ao produto de melhor relação custo-benefício,
comprovadamente eficaz nos cuidados com a saúde, na sanitização de ambientes e
na proteção contra doenças, incluindo a covid-19”. Em nota, o vice presidente da entidade, Marcio Milan,
argumenta que “os consumidores se adaptaram e adotaram a prática comum de
compra do álcool líquido 70% para higienização de ambientes em casa e no
trabalho, pois o setor supermercadista fez uma campanha bem-sucedida de
orientação e esclarecimentos que proporcionaram um comportamento sensato e
seguro destes sanitizantes, sem o registro de contingência ou acidentes desde a
liberação da comercialização pela Agência em 2022”. A Abras acrescenta que, desde a autorização da Anvisa em
2022, mais de 64 milhões de unidades de álcool líquido 70% foram
comercializadas pelos supermercados. “O setor tem observado que o consumidor
mantém a preferência pelo álcool 70% na forma líquida por não deixar resíduos
em móveis e objetos”. Quem sentiu literalmente na pele o problema de liberar a
comercialização de álcool líquido tem posição bem diferente da manifestada pela
Abras. “Sou 100% favorável à proibição da venda, na forma como é feita. É um
produto extremamente perigoso que não pode ser tão acessível, mesmo que sejam
feitas campanhas de conscientização sobre seu correto manuseio”, alerta Pedro
Ernesto, que hoje carrega umas poucas manchas e alguns vazios de pelos na
perna. Superação “Foi uma experiência muito ruim, mas me trouxe muitos
aprendizados sobre como encarar a vida. Hoje estou sempre na busca por coisas
que me fazem feliz. Passei a enxergar melhor o que é a felicidade. E, nos
momentos em que estou mal, sinto mais facilidade de encarar os problemas.
Nessas horas, lembro que já encarei muita coisa pior. E lembro novamente
daquele cara coberto de ataduras dizendo que tudo vai passar”, completou. Mágoa com o tio que causou o acidente? “Nenhuma. Muito pelo
contrário. Hoje estamos muito mais próximos e amigos. Foi um acidente, mas foi
também ponto de partida para muitos aprendizados.”
Pedro Peduzzi/Maria Claudia, com foto: Juca Varella – Agência Brasil
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