08/05/2023
Mandetta diz que Bolsonaro poderia ter evitado pelo menos 350 mil mortes na pandemia da Covid-19
BELO HORIZONTE, MG - “Poderíamos ter evitado metade dos
mortos. Se tivesse feito a campanha direitinho, falando todos a mesma língua,
diminuindo a velocidade de transmissão, teríamos tido um resultado muito
melhor”, avalia Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde, em sua primeira
entrevista após a Organização Mundial de Saúde (OMS) ter decretado o fim da
emergência sanitária mundial. As informações são do jornal Estado de Minas. Pela estimativa de Mandetta, dos cerca de 700 mil óbitos
ocorridos no Brasil - que representam 10% dos registros no mundo - as mortes de
350 mil pessoas por Covid-19 poderiam ter sido evitadas se o governo Jair
Bolsonaro não tivesse politizado o enfrentamento da doença e desmantelado a
coordenação unificada do Ministério da Saúde no combate à pandemia. Em balanço retrospectivo do enfrentamento da pandemia pelo
governo federal, Mandetta afirma que Bolsonaro fez tudo o que um chefe de
estado não deveria, naquele cenário de pandemia, se quisesse salvar vidas.
“Quando iniciamos o enfrentamento, tivemos alguns princípios: proteger a vida
incondicionalmente, manter a coordenação do enfrentamento no Ministério da
Saúde, usando o SUS como meio e a ciência para decidir. Eram os pilares de
nossa estratégia”, afirma Mandetta. “Mas a ideia dele (Bolsonaro) era retirar o Ministério da
Saúde do enfrentamento, deixando isso a cargo de governadores e prefeitos,
ficando o presidente como crítico e oposição, transformando a vida de
governadores e prefeitos num inferno”, avalia o ex-ministro. “As pessoas acham que ele é louco, mas foi decisão política,
com começo, meio e fim. Foi decisão deliberada e consciente, porque informei
por escrito e avisei qual era a projeção de mortes nesse cenário de confusão
informacional e de falta de coordenação de Brasília, caso fosse adotada a tese
da imunidade de rebanho, dentro da máxima do Paulo Guedes de que entre economia
e saúde, ficaria com a economia”, revela Mandetta. A primeira providência de Jair Bolsonaro, depois da
exoneração de Mandetta - e na sequência, a saída de Nelson Teich - foi
desmantelar a estrutura unificada no Ministério da Saúde sob o Sistema Único de
Saúde (SUS), com um grupo técnico de pesquisadores e profissionais das maiores
instituições brasileiras, em contato permanente com os principais centros de
pesquisa do mundo, para o embasamento do processo decisório. Também a estrutura de comunicação permanente com a
sociedade, para esclarecimento devido, evitando o charlatanismo nas mídias
digitais, foi interrompida. A imprensa brasileira precisou se organizar em consórcio
para acompanhar e divulgar as estatísticas da Covid-19, o que era papel do
Ministério da Saúde. “Fizeram uma intervenção militar no Ministério da Saúde, com
o que tem de mais desqualificado no Exército, o pessoal de logística. Se o
Exército tem generais da área da saúde, por que não colocaram um deles? Porque
queriam uma pessoa servil, que sem compromisso com o combate à Covid-19”,
afirma o ex-ministro. “Foi uma decisão política que levou muitas pessoas à morte.
E não foi decisão política tomada sem ter sido avisado. Fizemos três cenários,
e o cenário mais pessimista que projetamos, foi exatamente aquele que Bolsonaro
escolheu: o caos informacional e a desarticulação do sistema de saúde.
Bolsonaro foi para esse cenário de forma completamente consciente. E eu mandei
por escrito”, diz Mandetta. Caos nos estados Sem consenso em Brasília, os entes federados já não
trabalhavam juntos. Governadores e prefeitos bolsonaristas adotavam a narrativa
negacionista em confronto com governadores e prefeitos que seguiam as
orientações científicas. O grau de politização no trato à doença transbordou para
diversas instituições brasileiras, inclusive o Conselho Federal de Medicina,
que, em tese, foi criado para zelar pela boa prática médica. “Chegamos ao fundo do poço. O Conselho Federal de Medicina
valida essa narrativa negacionista e cria dois tipos de médicos na ponta:
aquele que dava cloroquina e aquele que não dava. Politizaram a própria prática
médica”, assinala Mandetta. Atraso das vacinas Depois de ignorar as oportunidades de adquirir de
laboratórios internacionais as vacinas mais rapidamente, também a imunização
foi politizada e Jair Bolsonaro iniciou a pregação contra as vacinas.
“Politizaram a vacina, porque acharam que haveria imunidade de rebanho. Não adotaram
a minha recomendação, que era de comprar a vacina cedo. Eu assinei e induzi a
Fiocruz ao acordo de cooperação com a Oxford e disse vamos apoiar o Butantã com
a China. Senão não teríamos tido vacina”, relembra Mandetta, registrando que na
segunda onda da Covid-19, morreram, entre 31 de dezembro e 31 de julho, quase
380 mil pessoas. “Foi um número absurdo de óbitos no primeiro semestre de
2021”, aponta ele. “E foi aquela barbaridade, aquela vergonha de Manaus. E o
que fazem? Vão para Manaus e mandaram grupos de pacientes para todas as
capitais brasileiras. Os pacientes com a cepa delta”, diz ele, explicando que
uma mudinha da cepa foi colocada em cada lugar de concentração humana no
Brasil. “Foi o nosso desespero. Curitiba, São Paulo ficaram quase
sem oxigênio. Não existe país no mundo em condições de produzir oxigênio para o
país todo com consumo 38 vezes maior do que a média. Foi nosso maior pesadelo.
Chegaram a morrer 4.500 pessoas em um único dia”, aponta. Erros no plano
internacional No plano internacional, também houve erros, aponta Mandetta.
A começar pela falta de transparência e de informações no momento em que a doença foi detectada em
Wuhan, na China. “A Orgnização Mundial de Saúde (OMS) fez algo atípico:
considerou uma emergência para a cidade de Wuhan e um alerta internacional. Mas
o mundo estava sob a indefinição: não sabia se estava diante de um vírus que
não iria sair daquela região, não conhecia a velocidade de propagação os
números de contágio”, diz Mandetta. Quando a Itália entrou em colapso, a China parou de exportar
e começaram a faltar insumos como máscaras, agulha e outros, em todo o mundo.
“Foi erro mundial concentrar na economia de escala a compra de elementos
essenciais de um único país”, diz Mandetta. Sistematização de
erros e acertos Para Mandetta, o momento agora é de o Ministério da Saúde
promover congressos e reuniões de trabalho para sistematizar a experiência,
identificando erros e acertos no enfrentamento da Covid-19, de modo a deixar a
contribuição para as gerações futuras no enfrentamento das pandemias que virão. “É uma questão de tempo”, diz o ex-ministro, que também
aponta para o histórico precário das determinantes sociais em saúde no Brasil.
“A Covid-19 foi doença infecciosa que ingressou no país pelas classes ricas,
diferentemente do que normalmente acontece. Mas sabíamos que seria uma questão
de tempo para alcançar as nossas fragilidades”, diz Mandetta. “Quando vem uma doença assim, ela cobra um preço enorme da
falta de políticas públicas para que as pessoas tenham moradias Como vamos
falar de higiene com o Rio de Janeiro, que tem 40% das pessoas em área de
exclusão social absoluta, sem saneamento?
E nós falando em isolamento para famílias que vivem em casas de 20m2,
sem pia para lavar mão. Essa lição, as nossas determinantes sociais em saúde
seguem como nosso ponto fraco”, diz ele. Erros cometidos no
enfrentamento da pandemia No Brasil - Jair Bolsonaro desmantelou o comando do enfrentamento à
Covid-19 que em princípio fora centralizado no Ministério da Saúde. Com a
centralização do processo de tomada de
decisões, pretendia-se garantir que o Ministério da Saúde, governadores,
prefeitos em interação com a sociedade, prestassem a mesma orientação, evitando
ruídos. Nesse comando centralizado estruturado por Mandetta, havia a
participação de representantes dos conselhos nacional de secretários estaduais
e municipais da saúde; pesquisadores e técnicos das maiores instituições
nacionais, em interlocução permanente com centros internacionais de pesquisa,
para a tomada de decisão forte e embasada do ponto de vista científico. Jair
Bolsonaro fez intervenção militar no Ministério da Saúde e desarticulou toda a
estrutura; - Interrupção do diálogo aberto com a sociedade, em
coletivas e boletins diários promovidos em princípio pelo Ministério da Saúde,
para esclarecer as práticas ao enfrentamento, dentro da compreensão o vírus
ataca a sociedade, o que requer o engajamento de todos; - Interrupção da divulgação das estatísticas da doença, o
que foi assumido pelo consórcio de imprensa, função que seria do Ministério da
Saúde. Dentro da estratégia de desqualificar a gravidade da doença, ajudou a
disseminar narrativas falsas, até mesmo relacionadas ao registro de óbitos; - Ao adotar o negacionismo trumpista em relação à gravidade
da Covid-19, desinformava a população sobre as formas de evitar o contágio -
como o uso da máscara, lavar as mãos, não aglomerar; - Politização extrema do enfrentamento da doença, dentro da falsa tese de promover a imunidade
de rebanho, não através da vacinação, mas pelo livre contágio, o que levou a
mais mortes, à medida em que, sem controlar a velocidade da transmissão, o
sistema de saúde colapsou em vários estados; - Jogou as populações contra prefeitos e governadores que,
na ausência da coordenação do Ministério da Saúde , faziam o enfrentamento:
estimulou ao descumprimento das medidas de proteção; atacou todas as medidas que destinavam-se a
reduzir a velocidade da transmissão do vírus, promovendo aglomerações e defendendo
o não uso de máscara; demorou a adquirir as vacinas e atacou essa forma de
imunização. Erros no plano
internacional - Falta de transparência internacional no momento em que foi
detectada a doença; o mundo teve pouca informação até a doença alcançar a
Itália e colapsar o sistema de saúde;
- Concentração mundial da compra de itens essenciais á saúde
- máscaras, agulhas, em único país, no caso, a China, que respondia, por
exemplo, por 94% da produção mundial de máscaras; um quinto da produção de
respiradores, além de insumos para a produção de vacinas. Ao interromper a
exportação para dar conta da demanda interna, o enfrentamento em todo o mundo
foi afetado. EM, com foto: Isac Nóbrega/PR
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