26/10/2022
Corte de verbas feito pelo governo para “irrigar” Orçamento Secreto já afeta pacientes com câncer
BELO HORIZONTE, MG - Dona Dinalda Maria Machado Henriques
tinha 42 anos e uma rotina de dona de casa, em 2011, quando começou a sentir os
dentes bambearem. Logo depois veio uma infecção na raiz dos dentes. E por fim,
alguns começaram a cair. A preocupação aumentou quando apareceu uma íngua no
pescoço. Foi o estopim para buscar um médico. Dinalda foi diagnosticada com Linfoma não Hodgkin de grandes
células B, uma espécie de leucemia, um câncer mais raro. Na época, morava em
Ipatinga, no Vale do Aço, e mudou para Juiz de Fora, que dispunha de mais
recursos hospitalares. “Trabalhava em casa, tive que abandonar tudo para poder
cuidar e seguir com o tratamento. Consegui 'encostar' no INSS, na época”,
recorda Dinalda.
A dona de casa se recuperou do câncer em 2012. No entanto,
dois anos depois, a doença voltou. Em 2017, precisou fazer um transplante de
medula, procedimento que voltou a fazer em 2020.
A partir daquele ano, o cenário já era totalmente diferente.
Dinalda tinha dificuldade de encontrar médicos, marcar exames e conseguir
remédios para tratar do câncer.
“Muita dificuldade com médico, com exames. Quando eu fui
fazer a primeira [quimioterapia], consegui o tratamento original, que é o
coquetel direcionado a linfomas. Em 2020, não consegui mais. Consegui outra
quimioterapia [mais agressiva]. Tive que ficar internada”, relatou a dona de
casa. Dinalda relata que, a partir de 2020, o câncer se espalhou
para o intestino. Com muitas dores, passou dias nas Unidades de Pronto
Atendimento para conseguir atendimento. “Demorava, não tinha vaga para fazer
exames e médicos. Na época de internar, você precisa passar pelas UPAs.
Precisei ficar quatro dias sentada para esperar a vaga sair. Às vezes nem
remédio para dor tinha. Demorou seis meses para ser atendida”, relatou.
E quando conversava com os médicos e enfermeiros sobre a
demora, a resposta era sempre a mesma. “O governo não dá condições para comprar
os remédios, essa era a justificativa que os funcionários davam”, relembrou
Dinalda.
Sem conseguir os remédios pelo SUS, o filho de Dinalda,
Lucas Gabriel, precisou arcar com os custos. Jornalista, o rapaz gastou cerca
de R$ 20 mil durante três meses apenas com remédios. “Peguei dinheiro
emprestado para custear e paguei parcelado a maioria dos medicamentos”,
relatou. Mesmo com as dificuldades, Dinalda conseguiu fazer o
tratamento. No entanto, as sequelas ficaram. Hoje, aos 53 anos, ela tem
dificuldades de audição e de movimentação dos membros superiores. Cortes Para irrigar o Orçamento Secreto, o governo Jair Bolsonaro
(PL) cortou verbas de diversos ministérios. Pelo menos é isso que mostra o
projeto de orçamento encaminhado para o Congresso Nacional. Entre os diversos cortes, um que chama atenção é o
relacionado ao câncer. Para o ano que vem, estão programados R$ 97 milhões para
“Rede de Atenção à Pessoa com Doenças Crônicas - Oncologia”. O valor é 45%
menor que o aplicado em 2022, que foi de R$ 175 milhões.
A tesourada atinge o repasse de dinheiro do Ministério da
Saúde para os governos estaduais, prefeituras e entidades sem fins lucrativos
para implementar, aparelhar e expandir os serviços de saúde hospitalares e
ambulatoriais.
Em Juiz de Fora, uma das referências na área de cirurgia
oncológica era o Hospital Universitário. No entanto, em 2022, deixou de
realizar o procedimento. Segundo o HU, o Hospital não conseguiu o
credenciamento junto à Secretaria Estadual de Saúde. Além disso, a instituição
não recebia do Ministério da Saúde os valores da tabela de serviços de
oncologia. “Sem o credenciamento e o recebimento pelo Ministério da
Saúde dos valores da tabela de serviços de oncologia, a continuidade das
cirurgias oncológicas pode comprometer a sustentabilidade da instituição,
ameaçando, inclusive, outros serviços essenciais prestados à população de Juiz
de Fora e região”, afirmou em nota o HU.
Mesmo antes de acabar com o serviço, o número de cirurgias
oncológicas no HU estava em queda. Em 2016, foram 453 procedimentos. Em 2018
foram 624, o maior para a série histórica divulgada pela assessoria da
instituição. Em 2021 foram 287 cirurgias, o menor número registrado. Em 2022,
até a decisão de suspender o serviço, tinham sido realizados 219 procedimentos.
“Os pacientes atendidos no HU-UFJF foram encaminhados para
continuidade do tratamento nos centros credenciados”, informou o órgão. Cortes preocupam Para Lourival Oliveira, professor da Universidade Federal de
Juiz de Fora (UFJF), os cortes anunciados pelo governo federal preocupam
justamente por atingir uma área importante. Em 2020, último ano com dados
disponíveis, morreram de câncer 225.839 brasileiros, segundo o Instituto
Nacional de Câncer (INCA). “A gente tem uma pressão e uma demanda acumulada enorme. O
que você teria para os programas de saúde não era ter cortes, e sim ampliação.
A gente sabe o que significa quem depende desse tratamento. Você precisa ter
toda a atividade preventiva para tentar detectar com antecedência o câncer.
Tendo detectado, tem que ter o acompanhamento o quanto antes. As pessoas com
problemas precisam ter acesso aos tratamentos. Quanto mais tempo demora, a
situação só piora”, lamentou o professor.
Para Lourival, quem quer que seja o presidente em 2023,
precisará encontrar soluções orçamentárias para a área. “Qualquer governo que
assumir o ano que vem terá que reverter isso, com uma dificuldade muito grande,
pois o impacto que você tem é reduzir a quantidade e a qualidade do
atendimento. Isso para uma população que vem de uma pandemia, que precisa do
SUS para combater sequelas e outros problemas”, destacou.
E para quem sofre na pele os problemas do câncer sabe que é
uma doença que não dá para esperar. “[os cortes] São muito preocupantes, porque
muitos [pacientes] podem piorar por falta de medicamentos. O câncer não
espera”, finalizou Dinalda.
O Ministério da Saúde foi procurado para responder sobre os
cortes orçamentários no programa “Rede de Atenção à Pessoa com Doenças Crônicas
- Oncologia”, mas até o fechamento desta reportagem não se manifestou. EM, com foto: Arquivo Pessoal
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