21/08/2021
Preço da gasolina inviabiliza transporte por aplicativo e motoristas já abandonam atividade
SÃO PAULO, SP - O aluguel do carro que Daniela Cristina
Teles, de 37 anos, usava para trabalhar subiu de R$ 1.400 para R$ 2.000 por
mês. O litro do etanol passou de R$ 1,89 para R$ 4. O aumento do número de
casos e mortes por covid-19 a deixou com medo de estar no mesmo ambiente que
desconhecidos. "Parei de trabalhar com aplicativos em janeiro de 2021
porque tudo aumentou e a demanda de passageiros diminuiu. Tantas desvantagens
me fizeram procurar outra coisa", afirmou. Ela conseguiu emprego na Câmara
Municipal de São Paulo. "Eu ainda tentei fazer Uber no fim de semana, mas nem
assim estava valendo a pena", contou Teles à reportagem. Ela disse que nos últimos meses desistiu definitivamente de
trabalhar com aplicativos, depois de se desanimar com o valor que gastava para
abastecer o carro. "Eu ganhava de R$ 200 a R$ 300 reais por dia, mas eu
gastava R$ 200 para encher o tanque com gasolina. Não valia a pena nem como
complemento da renda", afirmou ela. Essa foi a decisão de milhares de pessoas cadastradas como
motoristas em aplicativos de transporte em todo o Brasil, de acordo com o
número apresentado por associações. Procurados, Uber e 99 — as maiores empresas
do segmento no país — não apresentaram seus números ou discordaram desses
dados. As plataformas disseram que não têm nenhuma relação com o
aumento dos combustíveis, mas que fazem parcerias com redes de postos, o que
garante descontos aos motoristas. O presidente da Associação de Motoristas de Aplicativos de
São Paulo (Amasp), Eduardo Lima de Souza, — que diz representar até 62 mil
profissionais — afirma que as tarifas não são reajustadas desde 2015. Segundo
ele, 25% dos motoristas de aplicativo deixaram de trabalhar para a plataforma
desde o início de 2020. De acordo com o representante da categoria, esse número foi
colhido a partir de uma base de dados da prefeitura. Souza diz que ela tinha
120 mil motoristas cadastrados no início de 2020 e, hoje, tem 90 mil. "Os motoristas entraram numa fase crítica depois desses
consecutivos aumentos dos combustíveis. Uma situação muito grave. Não tivemos
reajuste de tarifa nem para acompanhar a inflação desde 2015. O motorista vem
sentindo isso e muitos vêm desistindo desde o início da pandemia, em 2020",
afirmou. A 99 disse que conecta mais de 750 mil motoristas a
passageiros em quase 2.000 cidades brasileiras e que este número se manteve
estável mesmo durante a pandemia. "Podemos afirmar que não registramos
diminuição significativa de motoristas parceiros na plataforma", disse a
empresa por meio de nota. A empresa também admitiu que "o aumento de pedidos de
corrida pode ocasionar maior tempo de espera na plataforma". A 99 disse
ainda que " penaliza o motorista parceiro que cancela de forma recorrente
as corridas, assim como ocorre para passageiros". A Uber disse que tem "equipes e tecnologias próprias
que revisam constantemente as viagens e cancelamentos para identificar
suspeitas de violação e, caso sejam comprovadas, banir as contas
envolvidas". A Uber disse ainda que "os usuários estão tendo de
esperar mais tempo por uma viagem porque, especialmente nos horários de pico,
há mais chamados do que parceiros dispostos a realizar viagens." Valor do repasse O presidente da associação pede que os aplicativos tomem
medidas para aumentar os rendimentos dos motoristas. A principal é aumentar os
valores repassados aos trabalhadores. Souza diz ainda que a categoria está em negociação com o
governo paulista, a quem eles pedem uma redução do ICMS (imposto sobre mercadorias
e serviços) dos combustíveis. Eles também querem a implantação de um programa
para auxiliar os motoristas a converterem seus carros para o Gás Natural
Veicular (GNV) — que permite uma economia de mais de 50% em relação ao consumo
de gasolina. Para instalar o equipamento, porém, os motoristas dizem que
precisam desembolsar até R$ 4.000. Caso a situação persista sem acordo, os
sindicalistas ameaçam fazer protestos e até entrar em greve. "Queremos que o governo estadual zere o ICMS do
combustível. Esses dias, abasteci R$ 220, mas R$ 94 foi apenas de imposto. Se a
gasolina chegar a R$ 7, como dizem, não tem como trabalhar. A gente busca o
diálogo, mas numa possível manifestação, a população também estaria do nosso
lado porque os combustíveis e a qualidade do transporte impactam e também
prejudicam diretamente a vida deles", afirmou Eduardo Lima de Souza. Ele disse estar em "negociação avançada" com o
governo para a implantação do projeto sobre o GNV e que tem participado de
reuniões com a Uber e a 99 para tratar de aumentos dos repasses. Procurado, o Governo do Estado de São Paulo resumiu a dizer
que "houve reuniões sobre o tema e há interesse no projeto". Daniela Cristina Teles, que desistiu de trabalhar como
motorista de aplicativos, começou a atuar na área em 2017, depois de 15 anos
trabalhando como gerente de loja em um shopping de São Paulo. Ela disse que
migrou de profissão na época porque já estava cansada, queria ter um trabalho sem
ter de lidar com chefe e poder fazer o próprio horário. "Atualmente, o motorista escolhe corridas porque tem
algumas inviáveis. Deveria haver um reajuste de tarifas para fazer as corridas
girarem e mais gente querer usar. As plataformas aumentaram o valor para os
passageiros, mas ele não foi repassado para os motoristas e o serviço piorou.
Todo mundo perdeu". Vontade de desistir Usuários frequentes de aplicativos de transporte ouvidos
pela BBC News Brasil disseram que, no último ano, se tornou mais difícil fazer
uma corrida, pois é comum motoristas cancelarem antes de buscar os passageiros. Motoristas disseram que isso é verdade e que ocorre porque
muitas vezes o percurso não vale a pena, por conta do grande deslocamento até o
local onde o passageiro está. A massoterapeuta Ana Paula Aparecida de Oliveira, de 38
anos, trabalha há cinco como motorista de aplicativo, depois que se divorciou e
abandonou o emprego na empresa do ex-marido. Com o dinheiro do trabalho com
aplicativos, ela criou os dois filhos, hoje com 18 e 14 anos, mas agora
reflete: "penso todos os dias em desistir". "É triste quando fecha o dia e eu saio para abastecer.
Estou há muito tempo fora do mercado de trabalho e tenho dois filhos para
criar, senão eu voltaria para a minha área", afirmou. Ana Paula é uma motorista exemplar e possui um status que os
mais novos almejam: 25 mil corridas acumuladas nos aplicativos, sendo 15 mil na
Uber e 10 mil na 99. Ela ainda é avaliada pelos passageiros com nota 5 (máxima)
na 99 e 4,99 na Uber. Quanto maior a nota e o número de corridas, mais chances
ela tem de ser selecionada pelo algoritmo para transportar mais passageiros. Com tamanha experiência no mercado, ela diz trabalhar 14
horas por dia, das 18h às 8h. Como a Uber só libera 12 horas de jornada por
dia, as outras duas ela complementa com a 99. "É uma jornada muito puxada, mas necessária. É um
horário de urgência e emergência, no qual somos muito acionados. Se você ligar
para a ambulância, ela demora, mas a preta aqui chega em 5 minutos", afirmou
sorrindo. Ela disse que dezenas de motoristas relatam, em grupos de
WhatsApp que ela participa, que estão exaustos, deprimidos, com ansiedade e
desesperados por não terem certeza de que conseguirão pagar as contas no fim do
mês. Ela também se diz "lutando contra o psicológico", mas afirma que
usa truques para não ficar no prejuízo. Entre eles, está a escolha de corridas. "Eu escolho corridas, não nego. Quando toca uma corrida
longa, eu aceito. Já no horário de pico, se eu pego muitas curtas, o lucro é
menor porque algumas vezes demora 10 minutos para chegar até o passageiro.
Geralmente, eu perco esse tempo e gasto combustível para fazer uma corrida
pequena", relatou. Para ela, o ideal seria ter condições de instalar um kit GNV
no carro para economizar combustível. "Assim, eu teria um fôlego maior. Eu tenho um carnê do
carro para pagar, responsabilidades e dois filhos adolescentes em casa. Eu pago
R$ 300 de luz. Eu queria ter uma válvula de escape, mas a minha área é
descartável. As pessoas abrem mão de muita coisa e deixam a minha área por
último. Ninguém quer fazer massagem na crise", afirmou. Escolha e
cancelamento de corridas O presidente da Amasp, que também trabalha como motorista,
disse que se tornou comum ocorrer situações nas quais o motorista gasta mais
para buscar o passageiro do que ganha para levá-lo ao destino. "Semana passada, tive de rodar 17 minutos (5,9 km) para
chegar ao passageiro. Quando o peguei, percorri 1,5 km em cinco minutos. Ganhei
R$ 8 pela corrida, o que mal deu para pagar o combustível, já que meu carro faz
5,9 km com um litro de etanol", afirmou Eduardo Lima de Souza. Ele ainda critica o algoritmo do aplicativo, que, segundo
ele, liga motoristas a passageiros que estão mais distantes. Ele mesmo disse
ter feito testes com outros motoristas, que apontaram que o aplicativo acionou
motoristas mais longe, ao invés de alguns que estavam mais próximos dos
passageiros. Souza também diz que o aplicativo, muitas vezes, cancela a
corrida sozinho. "As plataformas estão com problemas nos aplicativos e a
culpa está caindo nos motoristas", afirmou. Rosemar Pereira, de 48 anos, disse que só não desistiu de
trabalhar como motorista de aplicativo porque ganhou há um mês um kit GNV de um
amigo. "Eu só tive de pagar R$ 800 para instalar e R$ 600 para
alterar a documentação do carro, mas te garanto que a economia é gigante. O
problema é que a maioria dos motoristas não tem condição de fazer esse
investimento. Eu mesmo tive de usar o cartão da minha esposa para pagar a
instalação", contou. Pereira é motorista profissional há mais de 20 anos. Já
dirigiu táxi, ônibus e agora trabalha com aplicativos porque não consegue
voltar para a área de origem. Ele conta que já deixou o currículo dele em
diversas empresas de transporte para voltar a dirigir ônibus, mas acredita que
não é contratado por ser considerado velho para a profissão. Na opinião dele, se a previsão de alguns economistas se
concretizar e o combustível continuar aumentando, a categoria não conseguirá
mais trabalhar e acabará.
"Se tiver mais dois aumentos, a profissão acaba, se
torna inviável. Essas promoções que os aplicativos fazem para os passageiros
são inviáveis para nós. Os carros são lavados pelo menos duas vezes por semana.
Eu só não desisti porque não arrumei nada e ganhei esse kit que caiu do céu.
Mas se os aplicativos diminuíssem a taxa deles e o governo reduzisse os
impostos, ajudaria bastante o motorista". G1, com foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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